Vera da Silva Telles
Licia do Prado VALLADARES. A invenção da favela: do mito de origem à favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005. 204 páginas.
Essas são questões que se abrem a um fecundo campo de investigação ainda pouco usual no ambiente intelectual brasileiro. É nesse ponto que se situa a notável contribuição de Licia Valladares com A invenção da favela. Seu foco de atenção é o Rio de Janeiro, e sob a sua mira crítica estão as formas pelas quais a favela se constituiu como problema social e como problema sociológico, campo de problematização em que convergem, nas diversas conjunturas sócio-históricas, atores sociais em seus ancoramentos socioinstitucionais, modalidades de intervenção urbana, figurações mutantes da cidade e seus problemas, imaginários e projetos em disputa. A autora trata de estabelecer os nexos entre os movimentos da história e os movimentos das categorias tal como se deram no Rio de Janeiro e se coagularam na formação do conhecimento erudito no ambiente intelectual e acadêmico carioca. Mas o interesse desse trabalho vai além de circunstâncias locais e não concerne apenas aos pesquisadores do tema. São questões de atualidade e suas próprias inquietações que a movem nesse empreendimento.
Como a autora comenta na introdução, os anos de 1990 testemunharam um renovado interesse pelo tema; as pesquisas sobre favelas multiplicaram-se e um número crescente de alunos de pós-graduação passou a se interessar pelo assunto, instituições governamentais e não-governamentais ganharam igualmente peso na demanda de pesquisas e o Programa Favela-Bairro lançado pela prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 acentuou ainda mais a produção desses estudos. No seu conjunto, é uma produção intelectual que constrói a representação da favela como "território da violência, como lugar de todas as ilegalidades, como bolsão da pobreza e da exclusão social", fazendo circular as imagens da fratura social e de uma "cidade partida" (p. 20). É sob esse crivo que os temas correntes nesses anos da violência urbana e da segregação socioespacial parecem convergir em uma associação quase exclusiva entre favela e pobreza, fazendo dessa associação a própria especificidade e definição da favela, e também uma suposta especificidade carioca.
Um conjunto de pressuposições marcam a produção recente, afirma a autora, supostos e pressupostos não discutidos, que estruturam consensos irrefletidos, que pautam a agenda e conformam um campo de pesquisa que deixa escapar, sob uma figuração homogeneizadora da favela, uma notável diversidade social e espacial em seu universo, bem como o dinamismo social e econômico que vem marcando essas realidades. Anunciada na introdução, a questão será trabalhada no último capítulo ("A favela das ciências sociais"), em que discute os "dogmas" compartilhados pela maior parte dos pesquisadores: a especificidade da favela construída por uma suposta alquimia que lhe seria exclusiva entre irregularidade da ocupação do espaço urbano e ilegalidades várias, pobreza e privações múltiplas, violência e tráfico de drogas, mas também manifestações culturais que lhe dariam a marca de identidade, do samba em outros tempos ao funk atual; a favela como território urbano dos pobres, "cidade dentro da cidade", enclave e território da partição, símbolo da segregação socioespacial; a unidade da favela, vista sob uma categoria única em que pese as evidências de uma realidade plural e multifacetada. São dogmas que terminam por produzir algo como um desconhecimento sobre a realidade múltipla das favelas, mas também da pobreza urbana e da própria cidade. É isso o que Licia deixa entrever ao comentar as implicações metodológicas desse modo de construção dos objetos de pesquisa (pp. 151-152). Mas na sua mira crítica está, sobretudo, uma outra questão.
Para a autora, esses dogmas reatualizam estereótipos de longa data associados às imagens da favela, o que a leva a se perguntar pelas razões e modalidades de sua produção e persistência ao longo dos anos.
Assim, ao que parece, as representações e as imagens de favela, correntes nos debates atuais, não conseguiram se desvencilhar do seu "mito de origem" – essa é, a rigor, a hipótese da autora –, amplamente tributárias desse momento fundador, situado no final do século XIX quando os combatentes de Canudos ocupam o Morro da Previdência, logo depois chamado Morro da Favella. Compõem-se imagens inquietantes de um sertão instalado no centro da cidade, transposição da dualidade sertão-litoral cunhada por Euclides da Cunha nos termos da dualidade favela-cidade. Imagens que iriam plasmar um arquétipo de favela: um mundo diferente que emergia na paisagem carioca, cidadela da miséria, universo exótico e apartado da cidade, avesso da ordem urbana e social estabelecida. Como afirma a autora, "estava descoberta a favela [ ] e lançadas as bases necessárias para sua transformação em problema (p. 36).
No primeiro capítulo, Licia trata de perseguir as várias modulações dessa construção da favela como foco de inquietação e como problema que mobilizou, em um primeiro momento, atores e personagens presentes na Primeira República em meio aos princípios higienistas que então vigoravam e aos esboços de um urbanismo nascente. Em um segundo momento, anos de 1930, a favela constitui-se em um campo de intervenção pública: outros interesses, outra lógica política, outras mediações institucionais e outros personagens em ação que convergem para o reconhecimento das favelas como dado de uma realidade a ser levado em conta no jogo populista da época. Campo de intervenção pública, realidade a ser administrada, a favela ganharia, a partir dos anos de 1940 – esse o terceiro momento – uma outra objetivação sob a exigência prática de estudos sistemáticos sobre essa realidade ainda pouco conhecida. As primeiras pesquisas e levantamentos estatísticos datam dessa época e, em 1950, sob o comando de Alberto Passos Guimarães na direção do IBGE, a favela é incorporada no recenseamento geral: tratamento estatístico acompanhado por uma cuidadosa discussão metodológica sobre a própria categoria "favela" agora objetivada como categoria estatística. Esse é o momento em que o uso da palavra favela generalizou-se, passando progressivamente de uma categoria local a uma categoria nacional (p. 71).
No segundo capítulo, a autora segue os fios cruzados que construiriam a favela como campo de pesquisa, pavimentando o terreno das ciências sociais. Situado nos debates e embates próprios dos anos de 1950, entra em cena Dom Hélder Câmara, então bispo auxiliar do Rio de Janeiro, com sua Cruzada São Sebastião (1955), buscando uma "solução racional, humana e cristã ao problema das favelas no Rio de Janeiro" (p. 77).
Propondo a sua urbanização sob novas formas de intervenção, a Cruzada São Sebastião fez circular os princípios de desenvolvimento comunitário, com evidentes ressonâncias na noção de comunidade que passou a circular nos anos seguintes (e ainda hoje) e que, na época, iria igualmente se constituir em ponto de convergência com o Padre Joseph Lebret: personagem então presente, conhecido e reconhecido no cenário brasileiro, fundador do movimento Économie et Humanisme, formador de toda uma geração de planejadores urbanos paulistas a partir das atividades da Sagmacs, escritório de planejamento criado primeiro em São Paulo (1947) e, depois, em outras cidades. Padre Lebret, junto com José Artur Rios, foi o responsável pelo relatório "Aspectos humanos da favela carioca" (1960), resultado de uma pesquisa financiada pelo jornal O Estado de São Paulo e que teve uma notável repercussão político-midiática, tendo exercido "uma considerável influência sobre pesquisadores, sociólogos, arquitetos e geógrafos que, a partir da segunda metade dos anos 1960 e durante os anos 1970, lançaram-se à pesquisa de campo nas favelas" (p. 75).
Inovando nos seus procedimentos e orientações de pesquisa, esse estudo, avalia a autora, rompia com os dogmas que então vigoravam sobre a favela, oferecendo um vivo panorama de sua heterogeneidade e diversidade interna. No campo propriamente acadêmico, os caminhos das ciências sociais seriam igualmente marcados pela presença de Anthony Leeds, antropólogo norte-americano, que fez das favelas cariocas o seu campo de estudo para estudar a pobreza urbana. Ao longo dos anos de 1960, com seus seminários de pesquisa, teve um papel importante na história da pesquisa sobre favelas no Rio de Janeiro; formou jovens pesquisadores, introduziu os procedimentos da pesquisa de campo e marcou, ao final da década, sua presença na formação da antropologia urbana no contexto da universidade carioca.
No conjunto, esses anos de formação da pesquisa sobre a favela aparecem, sob a avaliação de Licia, como momentos fecundos de uma discussão ampliada e renovada sobre o tema, rompendo dogmas, inovando nos procedimentos de pesquisa, produzindo informações relevantes. No entanto, muito disso se perdeu nos anos seguintes. É o que Licia nos sugere ao descrever, em seu terceiro capítulo, o momento de institucionalização da pesquisa acadêmica. A partir dos anos de 1970, a produção científica ganha novos patamares e o tema da favela consolida-se como campo de investigação e objeto de conhecimento. Porém, há uma espécie de esquecimento do legado da produção anterior, e os dogmas não apenas persistem, como também se consolidam e se generalizam no âmbito da pesquisa acadêmica. Isso justamente é o que suscita a interrogação sobre as modalidades de construção da favela como objeto de estudo. É nesse ponto que se situam duas questões importantes – e polêmicas – lançadas pela autora no último capítulo e nas conclusões finais.
De um lado, os nexos que articulam a pesquisa acadêmica e as flutuações das políticas urbanas e programas sociais voltados às favelas, as mediações de agências governamentais e não-governamentais na demanda e financiamento de pesquisas e os modos de tematização da pobreza e da violência urbana em um intricado e ambivalente jogo de atores sociais e políticos atuantes no cenário urbano. De outro lado, se os dogmas persistem, não basta tão simplesmente fazer a contraprova em base nas evidências empíricas de pesquisas recentes. Trata-se de rever e repensar os parâmetros a partir dos quais pesquisar e descrever as novas realidades urbanas que vêm se configurando nos anos recentes. Trata-se da exigência hoje, assim sugere Licia, de se operar sob um outro jogo de perspectivas que permita dissolver a dualidade pressuposta "favela-cidade", para colocar em evidência – e sob o foco de uma nova e necessária problematização – questões emergentes pertinentes à vida urbana, cifradas na diversidade interna às favelas, mas não exclusivas a elas e que ainda precisam ganhar novos critérios de inteligibilidade. Nessa pulsação polêmica do livro de Licia Valladares encontra-se todo o seu interesse e importância, lançando ao debate questões que prometem pautar uma mais do que necessária discussão sobre os parâmetros críticos e descritivos da pesquisa social. Discussão oportuna, mais do que bem vinda.
VERA DA SILVA TELLES é professora do Departamento de Sociologia da USP.
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