terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Seguridade social no campo: Fogo amigo ou cavalo de Tróia?

Henrique Júdice

De todas as falácias engendradas contra a Seguridade Social, a mais perniciosa talvez seja a de que as aposentadorias e outros benefícios pagos aos trabalhadores do campo não têm caráter previdenciário, mas assistencial ou híbrido. No último 18 de janeiro, ela serviu de suporte à "notícia" do excelente resultado financeiro da previdência "pura" (isto é, "urbana"), publicada num site oficialista (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19403 ).

A Previdência Social visa amparar os trabalhadores; a Assistência, os necessitados. Num país como o Brasil, é comum que uma mesma pessoa detenha as duas condições. Mas por maior que seja a penúria em que alguém se encontre e por mais importante que a renda de uma aposentadoria possa ser para salvá-lo da ruína, o direito a aposentar-se decorre do trabalho, não da necessidade. Inversamente, por mais que um destinatário do bolsa-família possa ter trabalhado e inclusive contribuído para a Previdência durante a vida, o benefício que ele recebe não se origina dessa circunstância, mas da situação de pobreza.

Quando um trabalhador rural ou alguém de sua família solicita aposentadoria, pensão ou auxílio, não se pergunta quantos filhos tem, qual sua renda ou se está desempregado. A única coisa que se exige é a comprovação do trabalho. O que alegam, então, os defensores dessa tese, entre os quais se encontram os cinco últimos ministros da Previdência, que queriam, a partir dela, separar a contabilidade do INSS em rural e urbana? Que a receita do INSS no campo é inferior à despesa, fazendo com que os "benefícios rurais" sejam custeados pelas "contribuições urbanas" ou, conforme a "notícia" em questão, "pelo governo"; e que o trabalhador rural não precisa contribuir para ter direito a eles.

Não há lógica nessas alegações. Se o INSS não condiciona a concessão de benefícios ao trabalhador rural - empregado ou não - e seus familiares à comprovação de contribuições, é pela mesma razão que o leva a não fazê-lo com os empregados e avulsos urbanos: a responsabilidade pelo recolhimento da contribuição não é deles, mas, quase sempre, do adquirente da produção (no caso de pequenos proprietários, parceleiros ou arrendatários) ou do empregador. É a estes que cabe descontar do salário ou do preço de venda dos produtos agropecuários o valor devido ao INSS e efetuar seu repasse.

Não existem mais no Brasil, desde 1991 e graças a uma imposição da Constituição de 88, "duas previdências". Existe o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que abrange tanto os trabalhadores do campo como os da cidade. Calcular em separado a receita e a despesa do INSS é ignorar esse conceito e muitas coisas mais. Por exemplo, o princípio constitucional da equidade na forma de participação no custeio, cuja tradução para a linguagem corrente diz que a forma de contribuição de cada categoria de segurado deve corresponder à sua realidade - tornando plenamente justificável, portanto, que o pequeno produtor rural contribua sobre o resultado da venda de sua produção quando ela ocorre, e não mensalmente por carnê. Ou ainda - e talvez principalmente - um outro direito constitucional, o de ir e vir, exercitado, na segunda metade do século XX, por metade da população brasileira, que migrou do campo para a cidade, fazendo com que não exista, hoje, camponês idoso que não tenha filhos trabalhando e contribuindo em áreas urbanas "todo o mês, com base no salário", como quer o redator da matéria em questão. Supor que os direitos decorrentes do trabalho rural devam ser integralmente custeados por contribuições arrecadadas no campo contraria, assim, a própria idéia de pacto de gerações, alicerce dos sistemas previdenciários de repartição, pela qual os trabalhadores de hoje pagam os benefícios daqueles de quem, definitiva ou temporariamente, não se pode mais exigir trabalho.

Isso teria tanto cabimento quanto separar a arrecadação e a despesa previdenciárias entre homens e mulheres, ou entre casados e solteiros. Afinal, se o dinheiro arrecadado com as contribuições dos trabalhadores urbanos pertence, por direito, aos aposentados e pensionistas da cidade - como se pretende fazer crer sem que em lugar algum se ache escrito isso - , por que as contribuições de pessoas solteiras e sem filhos deveriam custear benefícios como pensão por morte e salário-família? E por que os homens deveriam contribuir para o pagamento do salário-maternidade? Se essas idéias soam absurdas é porque a sociedade brasileira atingiu um estágio civilizatório no qual esse tipo de discriminação contra a mulher não é mais aceito e a proteção econômica à criança e ao adolescente é vista como encargo de toda a sociedade. Falta ainda, pelo visto, atingir esse patamar também quanto aos trabalhadores rurais - constatação que se reforça quando certos despautérios são enunciados não pelos já conhecidos intelectuais orgânicos do setor financeiro, mas por quem supostamente a eles se opõe desde o campo progressista.

Essa é a dimensão conceitual do problema com a tese da "característica quase assistencial" dos benefícios pagos no campo. Mas esse não é um problema apenas teórico. Seus potenciais desdobramentos são graves.

Para antevê-los, basta ler o art. 201, § 2º da Constituição, em cujos termos "nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo". Como esse dispositivo aplica-se apenas à Previdência, os interessados no desmantelamento da Seguridade Social passaram a adotar - com certo sucesso, pelo que se vê - a estratégia inversa: deixa-se o art. 201, § 2º intacto, mas cria-se um consenso - começando, talvez, pelo meio acadêmico - de que os benefícios dos trabalhadores do campo são assistenciais, o que os excluiria de seu âmbito de incidência e permitiria sua desequiparação do salário mínimo por lei ordinária, cuja aprovação requer apenas maioria simples.

Bancos, corretoras e fundos de investimento não fazem segredo de suas aspirações de embolsar o dinheiro que os trabalhadores descontam para o INSS e os recursos do orçamento da União hoje destinados à Previdência. Seus porta-vozes há muito propagandeiam a necessidade dessa desequiparação. Para ficar com o exemplo mais recente, basta ler a seção de Previdência Social e Políticas de Renda da "Nova Agenda Social" da Casa das Garças (LTC, 2011). Enquanto, no capítulo 5, Fábio Giambiagi e Paulo Tafner propõem "desindexar o piso assistencial do previdenciário" a prazo imediato - remetendo a desequiparação entre este último e o salário mínimo para o futuro -, no de número 4, André Portela Souza escreve que, "embora o termo seja aposentadoria rural, trata-se de um benefício assistencial, pois não se exige do beneficiário nenhuma contribuição".

Sobre Giambiagi e similares, muita coisa deve ser e já foi dita aqui. Mas diferentemente de certos jornalistas e seus editores, movidos pela ânsia de louvar os governos Lula e Dilma por qualquer coisa, eles, pelo menos, sabem o que estão fazendo.

Henrique Júdice é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC). Atuou como consultor da Organização Internacional do Trabalho – OIT (2010) e pesquisador-bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) nas áreas de Previdência Social e Trabalho (2008-09), no âmbito do Programa Nacional de Pesquisa para o Desenvolvimento (PNPD). Foi servidor do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS (2003-04). É advogado (OAB/RS 72.676) formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e licenciado em História.


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