sábado, 29 de outubro de 2011

No Sri Lanka com a agricultura ocupando as áreas tradicionais de alimentação dos elefantes existe uma guerra entre estes e os humanos

Herton Escobar

Todas as noites, após o jantar, milhares de agricultores no Sri Lanka pedem licença às suas famílias e se retiram de casa para dormir em cabanas de palha construídas no alto das árvores. Levam água, lanterna, um ou dois rojões, telefone celular, e não descem de lá até o amanhecer. Passam as noites meio acordados meio dormindo, vigiando suas plantações contra o ataque de elefantes.

“Dos 12 meses do ano, acho que passo só 2 dormindo em casa, com minha família”, conta A. G. Bandaranaike, plantador de arroz dos arredores de Sigiriya, na região central do Sri Lanka. “É uma pena, mas não temos outra opção. Nossas vidas dependem dessa produção.” Se os elefantes vierem matar a fome com o seu arroz, sua família poderá não ter o que comer depois.

O conflito entre seres humanos e elefantes é um problema sério no Sri Lanka, uma ilha de 65,6 mil quilômetros quadrados, não muito maior do que a Paraíba, com 21 milhões de habitantes e mais de 5 mil elefantes selvagens. Cerca de 50 pessoas e 150 elefantes morrem em média todos os anos no país, vítimas de confrontos por espaço e alimento entre as duas espécies. Em 2010, esses números escalaram para 81 e 227, respectivamente.

Um conflito que Bandaranaike e seus vizinhos conhecem muito bem. Difícil achar alguém no interior do Sri Lanka que não tenha uma história de elefante para contar. Relatos de plantações invadidas, casas danificadas e até colisões de trânsito são comuns em várias vilas.

Franzino, mas energético, aparentando ter bem menos do que os seus 43 anos, Bandaranaike relata de maneira teatral o enfrentamento que ele, o cunhado e mais dois amigos tiveram com um elefante alguns dias antes. Estavam afugentando dois elefantes de uma plantação vizinha quando Bandaranaike ouviu gritos alertando que havia um terceiro animal em sua terra. Todos correram para lá e Bandaranaike usou rojões para afugentar o bicho, que correu para a floresta, mas voltou de surpresa e os atacou.

Em meio ao corre-corre, o cunhado, Loku Banda, de quase 60 anos, caiu e foi chutado pelo elefante. Foi parar no hospital com um braço quebrado, um cotovelo deslocado, e pode-se dizer que deu sorte. Ataques como esse costumam ser fatais.

Os conflitos mais graves quase sempre envolvem machos solitários, bem mais agressivos do que as fêmeas. A vida social dos elefantes no Sri Lanka é organizada em famílias de parentesco direto, regidas pelas fêmeas mais velhas. Os machos vivem em família até atingirem a maturidade sexual, por volta dos 10 a 15 anos. Depois, passam a viver por conta própria.

Na época da reprodução, seguindo uma regra quase universal do mundo animal, eles se enfrentam pelo direito de inseminar as fêmeas. É natural, portanto, que cada macho procure a melhor fonte de nutrição possível. “Para acasalar você precisa ser grande e forte. E a única maneira de ser grande e forte é se alimentando bem”, explica o pesquisador Prithiviraj Fernando, do Centro para Conservação e Pesquisa do Sri Lanka.

Infelizmente para os agricultores, não há nada numa floresta que se compare ao potencial energético de um arrozal, um bananal ou um canavial humano, cheio de plantas suculentas e supernutritivas num só lugar. “Os elefantes sabem disso e estão dispostos a correr riscos para obter essa refeição”, diz Fernando. “É aí que os conflitos começam.”

Um problema semelhante ao de pecuaristas e onças no Pantanal. Só que muito maior. E mais pesado.

“Para nós, o elefante é um animal magnífico, que precisa ser preservado. Para os agricultores, é como uma praga. Eles não querem matar os elefantes, mas querem uma solução”, diz o consultor Srilal Miththapala, do setor de turismo do Sri Lanka, que estuda o conflito há vários anos.

Quando um animal causa problemas demais, os fazendeiros revidam com tiros, armadilhas, veneno, ou até bombas caseiras, escondidas dentro de melancias, que explodem na boca do elefante ao serem mastigadas. Entre 1990 e 2009, cerca de 3 mil elefantes foram mortos nesses conflitos. Quase todos eles, machos.

Elefantes adultos precisam comer pelo menos 150 quilos de vegetação por dia. Razão pela qual passam 17 horas por dia se alimentando e precisam de áreas tão extensas para sobreviver. Com suas florestas e pastagens invadidas cada vez mais por cidades e fazendas, os conflitos tornam-se inevitáveis.

“Daqui para frente só vai piorar,”, prevê a bióloga Manori Gunawardena. Com o fim da guerra civil que aterrorizou o país durante três décadas, em 2009, várias áreas agrícolas que estavam abandonadas – e que foram ocupadas por elefantes nesse meio tempo – estão sendo retomadas por agricultores. “Eles vão começar a plantar, e os conflitos vão começar a acontecer”, avisa Manori.

Paradoxo
Um dos ambientes favoritos dos elefantes são as florestas secundárias de “chena”, ou coivara, nome dado à prática de agricultura com fogo, em que o produtor faz uma rotação de terras, deixando a mata crescer e queimando-a de tempos em tempos para fertilizar o solo. A vegetação dessas áreas é composta de plantas de vida curta e crescimento rápido, que são mais palatáveis para os elefantes.

Assim, ironicamente, ao desmatar florestas primárias e substituí-las por florestas secundárias, os agricultores favorecem a reprodução dos elefantes, fornecendo-lhes uma fonte abundante de alimento. Além disso, milhares de lagos artificiais espalhados pela ilha, construídos para irrigação, funcionam como oásis, mantendo os elefantes bem hidratados nos períodos de seca.

“É por isso que temos uma densidade tão grande de elefantes”, diz o pesquisador Devaka Weerakoon, da Universidade de Colombo. “Se não fosse pela interferência humana, o número de animais seria bem menor.”

O resultado é um cenário paradoxal, em que a ocupação de habitats naturais ao mesmo tempo encurrala os elefantes e favorece a sua multiplicação, criando uma densidade populacional excessiva que só aumenta os conflitos e dificulta a conservação da espécie.

A solução padrão adotada nas últimas décadas foi a transferência de elefantes de áreas de conflito para parques nacionais, onde imaginava-se que eles viveriam felizes para sempre. Mas não.

Mesmo com os parques cercados por cercas elétricas, a maioria dos machos escapa à força e volta à sua região de origem – às vezes caminhando centenas de quilômetros para isso. Os que não conseguem fugir (em geral fêmeas e jovens) permanecem próximos às cercas e sofrem com a escassez de alimento dentro dos parques, que muitas vezes não têm vegetação suficiente para sustentar tantos elefantes. No Parque Nacional de Yala, vários chegaram a morrer de fome, diz Weerakoon, mostrando-me fotos de elefantes esquálidos ao lado das cercas.

Estudos recentes mostram que os elefantes do Sri Lanka, diferentemente dos africanos, não são migratórios. Eles circulam por áreas relativamente pequenas (de 50 a 200 km2), às quais são intimamente ligados. Por isso não aceitam ser transferidos para outros locais.

Desde 2006, Fernando e sua mulher, a bióloga suíça Jenny Pastorini, acompanham via satélite os movimentos de 15 elefantes machos equipados com coleiras de GPS. Todos foram transferidos de zonas de conflito para parques nacionais, mas nenhum deles permaneceu lá. Todos escaparam. Alguns conseguiram voltar para seu local de origem, outros se perderam e passaram a causar problemas em novas áreas. Resultado: cinco elefantes e seis pessoas mortas até agora.

Armistício
Um dos poucos lugares onde homens e elefantes conseguiram firmar um armistício é no entorno do Parque Nacional de Wasgamuwa. Ali, conservacionistas fizeram o oposto: em vez de cercar os elefantes, cercaram os seres humanos. Duas vilas vizinhas do parque, Pussellayaya e Weheragalagama, foram “revestidas” com cercas elétricas, impedindo a entrada dos animais.

Funcionou tão bem que os agricultores nem dormem mais em cima das árvores. Voltaram a dormir em casa, com suas famílias. E multiplicaram suas rendas, recuperando áreas de plantio que estavam abandonados por causa do conflito. “Dez anos atrás isso aqui era uma guerra”, conta Ravi Corea, presidente da Sociedade para Conservação da Vida Selvagem do Sri Lanka, responsável pelo projeto.

“Depois das 18 horas ninguém mais escutava rádio, e orientávamos as crianças a não ler em voz alta para não atrair os elefantes”, conta o agricultor Athula Karmara, diretor do “comitê de manutenção e supervisão” da cerca de Weheragalagama. Agora, ele não só não atira mais nos elefantes como leva suas crianças para observar os animais na beira dos lagos onde eles bebem água nos finais de tarde. “É um passatempo familiar”, diz. “Ambos agora estão protegidos, humanos e elefantes, cada um do seu lado da cerca.”

Não muito longe dali, em Sigiriya, moradores continuam a viver com medo dos elefantes. O produtor de cebolas Karunaratne Banda me mostra os galhos quebrados de uma árvore no fundo de sua casa, danificada por um elefante que avançara sobre ele algumas noites antes. “Tinha acabado de jantar, saí de casa e o elefante estava lá”, conta. “Saí correndo, joguei a lanterna no chão e comecei a gritar. Foi o que meu pai me ensinou a fazer.”

O animal parou para inspecionar a lanterna e desistiu do ataque. Banda e Bandaranaike acreditam que o elefante seja o mesmo macho que aterrorizou a região um ano atrás, matando oito pessoas. “O Departamento de Vida Selvagem levou-o para longe, mas achamos que ele voltou”, diz Banda.

A conversa está boa, mas o agricultor pede licença para se retirar. Já é fim de tarde. Hora de subir na árvore.

O que fazer com tantos elefantes?

O cenário está posto: A população do Sri Lanka dobrou nos últimos 50 anos, de 10 milhões de habitantes na década de 1960 para mais de 20 milhões, hoje. Com o fim de uma guerra civil que durou 30 anos, em 2009, é provável que ela continuará a crescer. E para onde quer que cresça, vai trombar com elefantes. Estima-se que dois terços dos elefantes selvagens do país vivem “soltos” na natureza, fora de unidades de conservação. Cerca de 12% do território nacional já é ocupado por parques dedicados a esses animais. Não há espaço para a criação de novas áreas protegidas, e, mesmo que houvesse, os elefantes não aceitam ser mudados de lugar.

Em resumo: Ou os humanos encontram uma maneira de conviver com os elefantes, ou uma das espécies terá de recuar. “Não há mais hábitat vago no Sri Lanka. Todo lugar tem gente, todo lugar tem elefantes”, diz o pesquisador Prithiviraj Fernando, do Centro para Conservação e Pesquisa do Sri Lanka. “Os parques nacionais são suficientes para abrigar só um terço da população de elefantes. Se quisermos restringir os animais a esses parques, vamos fazer o que com os outros dois terços?”

A resposta mais radical seria sacrificar elefantes para reduzir sua densidade populacional em áreas críticas de conflito. Algo que parece absurdo, especialmente tratando-se de uma espécie ameaçada de extinção, mas já está acontecendo, de maneira muito mais cruel, à medida que elefantes são mortos ilegalmente por agricultores ou morrem de fome após serem transferidos à força para unidades de conservação.

“Estamos gastando uma quantidade gigantesca de dinheiro para cercar elefantes e condená-los à morte”, diz o pesquisador Devaka Weerakoon, da Universidade de Colombo. “Se é para fazer isso, melhor sacrificá-los. Seria uma morte menos cruel, pelo menos.”

Não é o que os pesquisadores desejam. Nem é algo que seria aceito pela população. Por mais grave que seja o conflito, o elefante é um animal adorado no Sri Lanka, de grande importância cultural e religiosa. Os mesmos agricultores que envenenam ou atiram nos elefantes que invadem suas plantações fazem de tudo para ajudar um elefante que esteja machucado ou que tenham caído num poço, por exemplo. Também são os primeiros a reconhecer que são os humanos que estão invadindo o território dos elefantes, e não o contrário.

A longo prazo, dizem os especialistas, a maneira mais sensata de mediar o conflito será pelo zoneamento e ordenamento territorial, definindo áreas onde seres humanos e elefantes devem viver separados e onde as duas espécies precisam aprender a viver juntas. Uma solução complexa e difícil de ser implementada. Mas talvez a única alternativa a matar elefantes.

“Não temos mais espaço para áreas protegidas exclusivas para animais. Mas temos bastante espaço para o planejamento de áreas mistas”, diz a bióloga Manori Gunawardena, uma das cientistas mais engajadas na conservação de elefantes do Sri Lanka.

A localização dos parques atuais foi escolhida entre as décadas de 1960 e 1980, quando ainda pensava-se que os elefantes eram animais puramente florestais. Consequentemente, os parques foram criados em áreas de florestas. “O que foi ótimo para muitas espécies, mas não para os elefantes”, diz Manori. O hábitat ideal para os elefantes, diz ela, é um misto de florestas, onde eles podem se refugiar durante o dia, e áreas de vegetação mais esparsa, coberta de grama e arbustos, onde eles podem se alimentar durante a noite.

É por isso que as áreas de agricultura rotativa, ou “chena”, são tão atraentes para os elefantes, que podem se alimentar da vegetação secundária que brota nos campos que não estão sob cultivo em determinados anos. A prática de chena é ilegal no Sri Lanka (apesar de amplamente praticada), mas pesquisadores querem regularizá-la, para servir como um “meio campo” de convivência entre homens e elefantes.

Cercas elétricas fazem parte da solução, para estabelecer limites, mas têm de ser colocadas nos lugares certos, ressaltam os pesquisadores. No lugar errado, podem trazer mais problemas do que soluções. No Parque Nacional de Yala, por exemplo, elas impedem o acesso dos elefantes nos períodos de seca a áreas importantes de alimentação que ficam fora do parque. “Elefantes não entendem fronteiras administrativas, só entendem fronteiras ecológicas”, diz Weerakoon. “Estamos pensando apenas como seres humanos. Temos de pensar também como elefantes.”

Inevitavelmente, diz Fernando, as pessoas terão de aprender e se acostumar a conviver com elefantes. Muitas das mortes associadas ao conflito, segundo ele, não são causadas por ataques deliberados, mas por acidentes em que pessoas trombam com os animais, caminhando, dirigindo ou andando de bicicleta à noite sem lanternas. Ou por guardarem grãos dentro de casa, que atraem os elefantes.

“As pessoas não aceitam dividir espaço com os elefantes, por isso não tomam algumas precauções básicas para se proteger”, diz ele. “Se você ocupa uma terra onde vivem elefantes, tem de entender que haverá consequências. Se as pessoas aceitassem isso, tudo ficaria mais simples.”

Eventuais remoções de elefantes, segundo ele, devem ser focadas nos machos individuais que causam os conflitos, e não na manada inteira.

No curto prazo, cada vila e cada agricultor lida com o conflito da maneira como pode. Quem tem dinheiro, coloca uma cerca elétrica em volta da sua propriedade. Quem não tem, dorme em cima das árvores e tenta afugentar os bichos com tiros de rojão, ou de espingardas. Mais sagrado ainda do que um elefante é uma safra de arroz.



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